Roteiro da queda – Whisner Fraga

O sono está no encalço da madrugada
E meu relógio analógico/digital vacila em um paradoxo genético
Os ponteiros acenam cinco horas
O quartzo traceja meia-noite e quinze
A temperatura, em graus Celsius, defende um calor
Que não posso sentir
A lua, conforme aquele escravo eletrônico/mecânico
Escora em quarto minguante
Enquanto a bússola relincha um norte militante, autômato
O cronômetro, a tábua de marés, o calendário
Os demais imprevistos do maquinismo
Compunham um estorvo à minha lógica
E não me restituíam o tempo.

Era um choro, um chiar dissonante de microrganismos
Acossando os entrepostos, os fortes, as trincheiras,
Triturando com seu algoritmo de bestas
A vulnerabilidade plasmática de minha filha.
Era um choro meu também
Um mecanismo de três meses
Cedia à experiência de um enigma de bilhões de anos.

Que era um choro que era um grito que era uma exigência
Que era uma promessa de algo incerto e seu holocausto recém-nascido
Que era a minha dor injetada em sua careta de pânico
Que era um mundo pilhando um mundo
E jumentos de lítio cacarejam uma hora irônica e falsa
Monstros de química martelam a próxima verdade:
Que a natureza é acaso
E ninguém pode pressupor o minuto que ainda não aconteceu.

arte

Tanussi Cardoso

Mês passado, quando estive no Rio, ganhei o livro “50 poemas escolhidos pelo autor”, de Tanussi Cardoso. Eu aprecio antologias, principalmente estas, cujos versos são selecionados pelo próprio poeta. Sou fã de Tanussi há muitos anos, acho-o um escritor de primeira e ontem quis começar o ano lendo algo de qualidade.

Diário

(Tanussi Cardoso)

É silêncio e teu ombro pesa.

Todos os teus murmúrios são inúteis
-mesmo a tua ida ao teatro.

Teu corpo
pregado numa cruz imaginária
foge de ti
e te acusa da febre que incendeia o quarto.
Os papéis sobre a mesa do trabalho
contam histórias tristes
e as borboletas nos lagos gelados têm mais vida.

É tudo simples: praias, serras, estradas,
carros, engarrafamentos, shoppings, sonhos:
a palavra é simples: a morte é simples:
as luzes dos altares nada queimam:
nos mármores das estátuas
quebramos nossos espelhos.

E tudo teima em te acusar: teu sexo estúpido,
teus amigos imortais, o amor que não consola,
a família nos retratos,
a faca suja na manteiga
que sangra o pão do dia.
Olhas da janela os pombos mirando os milhos;
olhas o namoro nos fios;
enganas teu rosto com tua paz suspeita.

Teu peito te trai. Teu poema te trai. Teu país te trai.
O olho enrugado te trai.
Teu jornal te faz de tolo.
Tuas guerras santas são falsas.
Teu cão te ladra.
Teu gato te arranha.

O sol entra em tua cama
e te cospe no rosto
o ofício de outra manhã
a cumprir.

É silêncio e teu ombro pesa.

Mensagem de fim de ano

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“Abajo había, pues, un pueblo, y él era su alcalde y acaso llamaba desde el porvenir un incierto destino. Mañana, ayer. Las palabras estaban granadas de años, de siglos. El anciano Chauqui contó un día algo que también le contaron. Antes todo era comunidad. No había haciendas por un lado y comunidades acorraladas por otro. Pero llegaron unos foráneos que anularon el régimen de comunidad y comenzaron a partir la tierra en pedazos y a apropiarse de esos pedazos. Los indios tenían que trabajar para los nuevos dueños. Entonces los pobres -porque así comenzó a haber pobres en este mundo- preguntaban: «¿Qué de malo había en la comunidad?» Nadie les contestaba o por toda respuesta les obligaban a trabajar hasta reventarlos. Los pocos indios cuya tierra no había sido arrebatada aún, acordaron continuar con su régimen de comunidad, porque el trabajo no debe ser para que nadie muera ni padezca sino para dar el bienestar y la alegría. Ese era, pues, el origen de las comunidades y, por lo tanto, el de la suya. El viejo Chauqui había dicho además: «Cada día, pa pena del indio, hay menos comunidades. Yo he visto desaparecer a muchas arrebatadas por los gamonales. Se justifican con la ley y el derecho. ¡La ley!; ¡el derecho! ¿Qué sabemos de eso? Cuando un hacendao habla de derecho es que algo está torcido y si existe ley, es sólo la que sirve pa fregarnos. Ojalá que a ninguno de los hacendaos que hay por los linderos de Rumi se le ocurra sacar la ley. ¡Comuneros, témanle más que a la peste!» Chauqui era ya tierra y apenas recuerdo, pero sus dichos vivían en el tiempo. Si Rumi resistía y la ley le había propinado solamente unos cuantos ramalazos, otras comunidades vecinas» desaparecieron. Cuando los comuneros caminaban por las alturas, los mayores solían confiar a los menores: «Ahí, por esas laderas -señalaban un punto en la fragosa inmensidad de los Andes-, estuvo la comunidá tal y ahora es la hacienda cual» Entonces blasfemaban un poco y amaban celosamente su tierra.”

(Trecho de “El mundo es ancho y ajeno”, de Ciro Alegría).

 

“Abaixo havia, pois, um povoado, e ele era o seu alcaide e talvez o chamasse no futuro um destino incerto. O velho Chauqui contou um dia algo que também lhe contaram. Antes tudo era comunidade. Não havia fazendas de um lado e comunidades fechadas de outro. porém chegaram uns estranhos que anularam o regime de comunidade e começaram a dividir a terra em pedaços. Os índios tinham que trabalhar para os novos donos. Então os pobres – porque assim começou a haver pobres neste mundo – perguntavam: “Que mal havia na comunidade?” Ninguém lhes dava resposta ou como resposta os obrigavam a trabalhar até se arrebentarem. Os poucos índios cuja terra não tinha sido ainda arrebatada, resolveram continuar com o seu regime de comunidade porque o trabalho não deve ser motivo para que se morra e sofra, mas para proporcionar o bem-estar e a alegria. Essa era, pois, a origem das comunidades e por conseguinte, da sua. O velho Chauqui tinha dito mais: “Cada dia, para o sofrimento dos índios, há menos comunidades. Eu vi desaparecer muitas arrebatadas pelos poderosos. Eles se justificam com a lei e o direito. A lei! o direito! Que sabemos sobre isso? Quando um estancieiro tem o direito é que algo está errado e se existe lei é só a que serve para nos molestar. Queira Deus não ocorra a nenhum dos fazendeiros que se limitam com Rumi a invocar a lei. Comuneiros, temam-na mais do que a peste!” Chauqui era já terra e apenas lembrança, porém os ditos viviam no tempo. Se Rumi resistia e a lei lhe tinha dado somente algumas lambadas, outras comunidades vizinhas tinham desaparecido. Quando os comuneiros subiam às alturas, os maiores costumavam confiar aos menores: “Aí por essas ladeiras – designavam um ponto na áspera imensidade dos Andes – esteve a comunidade tal e agora é a fazenda tal”. Então blasfemavam um pouco e amavam ciumentamente a terra.”

 

(Tradução do trecho feita por Olga Savary)

Algumas questões

Às vezes vou ouvir algum escritor, é raro, mas algumas vezes vou. Há uma argumentação recorrente na voz desses sujeitos, velhos ou novos.

1) Eles reclamam que nasceram para a literatura, que não sabem fazer mais nada.

Caramba, todo mundo sabe “fazer outra coisa”. Se não sabe, aprende, as opções são inúmeras. Agora, gostar de outra profissão são outros quinhentos. Ainda assim, é possível. Escrever é somente uma alternativa num universo em constante expansão.

 

2) Eles escrevem por altruísmo, porque querem um mundo melhor, porque querem deixar algo para a posteridade.

As pessoas só escrevem por vaidade e egocentrismo. A perpetuação do nome é somente vaidade elevada à vigésima potência. Escritores gostam de ser bajulados, elogiados, badalados e gostam de ler e ouvir tudo o que dizem de bom a seu respeito. E, é evidente, que só podem ouvir e ler enquanto estão vivos, logo, o importante é reconhecimento aqui e agora, custe o que custar. O mundo melhor, para um escritor, é aquele em que todos querem ler seus livros.

Antonio Cisneros

 

REQUIEM (3)

A las inmensas preguntas celestes
no tengo más respuesta
que comentarios simples y sin gracia
sobre las muchachas
que viven por mi casa
cerca del faro y el malecón Cisneros.
Y no pretendan ver
en la cháchara tonta esa humildad
de los antiguos griegos.
Ocurre apenas
que las inmensas preguntas celestes
sacan a flote
mi desencanto y mis aburrimientos.
Que a la larga
me tienen dando vueltas
como un zancudo al final de la tarde.
Haciendo tiempo,
mientras llega la hora de oficiar
mis pompas funerarias,
que no serán gran cosa
por supuesto.
En estos tiempos malos bastará
con una mula vieja
y un ánfora de palo
brillante y negra
como el lomo mojado de un delfín.
¡Ah las preguntas celestes!
Las inmensas.

 

(Antonio Cisneros , poeta peruano que faleceu ontem)

Fantasia fraudulenta

 O William Lagos traduziu meu “Abismo poente” para o inglês. Um dia traduzirá para o espanhol também. Ele me manda toda semana vários sonetos. Eu disse a ele uma vez que leio tudo, mas às vezes não comento. O fato é que ele é muito bom,  manja de literatura como poucos, conhece profundamente vários idiomas e escreve pra caramba. Vou colocar uns versos dele pra vocês conhecerem.

Fantasia fraudulenta III

que seja a fraude, então, seu esplendor,
não mais que brincalhona fantasia.
(talvez somente em mim gere poesia,
no romantismo bobo deste ardor…)

antigamente, havia um copo multicor,
no qual apenas uísque se bebia
e a cada gole a figura se despia,
numa lascívia a demonstrar certo candor…

hoje se mostra tudo, em mais clareza
e os véus já se esgarçaram do mistério…
mas essa imagem não se desnudará

e se a gatinha a agatunhar, tenho certeza
de que este verso de puro despautério
só um mutilado cartão descreverá…

(William Lagos)

Concursos

Este ano fiquei muito contente, porque a ALAMI resolveu me homenagear, dando o nome Whisner Fraga ao seu já bem conhecido Concurso Contos do Tijuco. É uma emoção tremenda, claro. Depois foi a história do Prêmio Luiz Vilela, o artista Anésio Azevedo com suas intervenções, levando minha crônica não-publicada às ruas. E, como eu sempre digo, um texto na rua tem vida própria. A gente nunca sabe em que mãos cairá. Anésio me contactou, concordei com a intervenção, por ver nela uma obra de arte, e melhor ainda, arte em progresso – a arte modificando a arte enquanto está sendo criada. É fantástico. Mas sou avesso a brigas, ainda mais políticas. Sou um sujeito pacífico, domado. Se alguém me chama a atenção, fico com dor de barriga, fico triste, cabisbaixo. Sei que nesta vida é impossível caminhar sem granjear inimigos e eu os tenho também, óbvio. A diferença é que nunca tive a intenção de recrutar nenhum. Se vieram foi porque tinham de vir mesmo e pronto. O que faço é sempre agradecer por tudo o que chega até mim.

Algumas palavras sobre o Concurso de Contos Luiz Vilela

Talvez os ituiutabanos não tenham uma ideia muito clara da importância do Concurso Luiz Vilela, que, durante mais de vinte anos, premiou contistas do país inteiro. O certame, que dava ao vencedor uma boa quantia em dinheiro, que recebia, a cada edição, em torno de mil trabalhos concorrendo ao prêmio, levava o nome de minha cidade natal aos cantos mais recônditos do Brasil. Digo isso com conhecimento de causa, pois, por onde quer que eu vá, quando respondo sobre Ituiutaba, logo já a conectam ao concurso.

Os livros editados com os dez melhores trabalhos circulam por todos os cantos. Recebo com frequência e-mails de gente pedindo exemplares, interessados em ler os contos selecionados. Quando relacionam o prêmio à cidade, logo pensam que aqui há políticos que valorizam a cultura, que reconhecem o valor da literatura. E é fato que deve ser louvado.

Estamos cansados de saber que uma parcela significativa da população saiu da faixa de pobreza, alcançando o status de consumidora. Os da classe C migraram para a B, os da B para a A, fazendo com que nosso povo tivesse acesso aos bens de consumo, embora continue sem acesso aos bens culturais, seja por desinteresse, seja por falta de dinheiro mesmo. Ações que saiam à captura de leitores só podem ser louvadas.

Posso garantir a qualquer um que venha me questionar, que os mil exemplares editados com os dez contos vencedores alcançam uma enormidade de leitores. Um livro em uma biblioteca, um livro lançado ao mundo, é sempre uma surpresa. Como vencedor da edição de 2007 do Prêmio Luiz Vilela, como autor selecionado em quatro outras oportunidades, posso afirmar que a antologia fez muita diferença em minha carreira.

Graças ao concurso, meu nome chegou aos ouvidos de antologistas e de pesquisadores que se interessaram pela minha escrita. Fui convidado a participar de importantes obras, caso da Geração zero zero, que mapeou os melhores escritores contemporâneos da década passada. Meu nome, de boca em boca, alcançou uma pesquisadora norte-americana, que passou a estudar meus dois últimos livros com seus alunos de pós-graduação. De boca em boca, minha prosa encontrou uma editora alemã, que se interessou pelo que faço e que traduzirá um texto meu para a Feira de Frankfurt, em 2013.

Poderia ficar aqui defendendo o concurso durante horas, mas acho que já dei uma boa amostra do meu pensamento. Por motivos que não pretendo abordar neste texto, o prêmio deixa de levar o nome do escritor ituiutabano mais conhecido no Brasil e no mundo. Não tenho dúvida nenhuma que grande parte do sucesso do Concurso Luiz Vilela se deveu ao fato de que o próprio Vilela gerenciava todos os passos do certame. Parece-me que ficou decidido que continuará a existir um prêmio literário em Ituiutaba, só que com outro nome. Não sei se será a mesma coisa, mas espero que sim.

Há poucos dias fiquei contente e um pouco alerta com o lançamento do 22 Concurso Luiz Vilela. Atento, pois o edital apresentado havia sofrido mudanças profundas, se comparado com os editais dos 20 anos anteriores. Conheço o Luiz Vilela e desconfiava que ele não havia sido consultado sobre as mudanças. De qualquer maneira, o Vilela desautorizou a Fundação Cultural de Ituiutaba, bem como a divulgação do concurso. Abaixo a carta que ele me enviou hoje sobre o assunto, que foi enviada ao presidente da Fundação, e que já está sendo divulgada em toda a Internet e em outros meios:

 

Ituiutaba, 22 de maio de 2012.
Exmo. Sr. Francisco Roberto Rangel

Presidente da Fundação Cultural de Ituiutaba

Prezado Senhor:

Li, com absoluto espanto, na edição de 18 do corrente do “Jornal do Pontal”, o edital de lançamento do 22.º Concurso de Contos Luiz Vilela, com o respectivo regulamento.

Tal espanto se explica pelo fato de que a mim, o autor homenageado do concurso, nenhuma informação prévia, a respeito, fora dada por essa Fundação, o que, mais do que uma indelicadeza, se configura como uma total falta de consideração para comigo.

Mil vezes pior, entretanto, foi constatar que, numa atitude nunca vista nestes mais de vinte anos de existência do concurso, uma atitude de desrespeito, arbítrio e prepotência, a Fundação fez, sem meu conhecimento, e, portanto, sem minha aprovação, uma série de alterações no regulamento, regulamento este que desde os primórdios do concurso foi sempre elaborado por mim.

Confessando-me profundamente indignado com tais procedimentos, venho pedir a essa Fundação que de imediato e doravante, e em caráter irrevogável, retire o meu nome do concurso de contos e de tudo o mais que a ele se refira, e, ainda, que, usando ela dos meios de divulgação a seu dispor, dê a todos os possíveis interessados ciência desta medida.

Por fim, informo que qualquer ação contrária ao meu desejo, expresso nesta carta, será por mim considerada não só uma afronta pessoal mas também uma
agressão aos meus direitos de cidadão, sobretudo o que tange ao uso de nome.

Sem mais para o momento, subscrevo-me,

 

Luiz Vilela

Desinformação

Como professor, sei que a coisa mais complicada que existe é dar uma aula ou falar sobre um assunto que não domino. Como ex-resenhista e ex-articulista, eu também sei disso. Então, eu estava lendo o jornal de hoje e me deparei com a seguinte matéria: “Lições de administração com um poeta”. Ora, administrador entender de poesia é coisa rara, fato decisivo para que eu me aventurasse pelo texto, de Rogério Amato:

“Li recentemente um artigo interessante do poeta russo nascido na Geórgia Vladimir Maiakovski.

Ele dizia: ‘Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor, e não dizemos nada. (…)'”

Decidi parar por aí. Para começar, não se trata de um artigo e sim de uma poesia e seu autor não é Maiakóvski e sim Eduardo Alves da Costa. Eduardo caiu numa armadilha: intitulou o conjunto de versos de “No caminho com Maiakóvski” e isso lhe tem gerado inúmeras dores de cabeça. O que é de se estranhar é um jornal do porte da Folha não ter um revisor que sacasse isso e fizesse a correção antes de publicar a matéria.

Erro semelhante ocorreu nos meus tempos de estudante de Letras. Minha turma confeccionou uma camiseta com a poesia, dando sua autoria a Maiakóvski. Quando vieram me oferecer uma, recusei, alegando que quem havia escrito os versos era Eduardo Alves da Costa. Pra quê? Fiz inimigos para o resto da vida.

Mas como é mesmo aquele dito popular? Perco o amigo mas não perco a chance de corrigir um engano?

O poeta Eduardo Alves da Costa

O poeta Eduardo Alves da Costa