Libertação

Eu tinha 9 anos e cursava a 3a série do primeiro grau em uma escola pública de uma pequena cidade do interior mineiro, quando, durante uma aula, a professora, uma senhorinha sisuda e honesta, lançou o desafio: o autor do melhor trabalho sobre o dramaturgo Vianinha ganharia como prêmio um livro. Um livro! Eu queria sair naquele momento da escola, correr para a biblioteca, para o teatro, para algum centro cultural, em busca de informações, de fotos, de qualquer material que me ajudasse a obter aquela recompensa. Não queria ter de esperar. Assim, com o auxílio de adultos, de enciclopédias, de voluntários, de artistas, consegui vencer a competição.

Ao perceber a tristeza nos olhares de meus colegas, percebi que não tinha talento para o triunfo, mas acabei relevando isso quando rasguei o embrulho e desentranhei do pacote uma edição de Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Uma edição barata, de papel ruim, capa duas cores, mas que exalava um cheiro de conhecimento, de tipografia, de diversão, que me persegue até hoje. Foi a primeira obra de minha biblioteca particular.

A partir dali, eu me tornei, nas palavras de meu pai, um desajustado. Tentaram me consertar: davam-me carona até o clube, um sol, uma piscina, me fariam desistir daquela loucura de me enfurnar num quarto pouco iluminado para ler alguma coisa. Tentaram me converter em uma criatura social, forçando-me a participar de cursos de oratória e socialização. Meus pais previam que, com o desajuste, se achegariam também a infelicidade, a miséria, a solidão. E, para a preocupação de todos, eu só piorava. Ia ao cinema, à praça, à casa dos pouquíssimos amigos, sempre com um livro debaixo do braço. Qualquer minuto de espera se tornava uma desculpa para a leitura.

Eu não tinha mesada, mas arranjava um jeito de conseguir uns trocados: passeava com o cachorro da vizinha, lavava alguma calçada, carregava as compras da semana daquela vovózinha torturada pela gota e pelo reumatismo. Eu havia contraído o “vício impune”, de que tanto falou o poeta Baudelaire. Trocava todas as moedas que ganhava por livros. Com o tempo, me tornei refém daquela máxima atribuída a Erasmo: “Quando tenho algum dinheiro adquiro livros e, se me sobra algum, compro então comida e roupas”.

Trato esses objetos com o carinho com que se deve tratar aquilo que se ama profundamente. Sei acariciá-los, sei sustentá-los com a palma estirada da mão, para que não se danifiquem, sei conservá-los para que me acompanhem com vigor nesta pequena viagem aqui na Terra. Não sei exatamente quantas obras possui o meu acervo, mas tenho livros espalhados pela casa toda. Livros em cima de mesas, da geladeira, dos criados, das camas, da máquina de lavar roupas, da pia. Helena, minha filha de onze meses, engatinha sobre capas, lombadas, páginas, e, surpreso, observo que, sob a ótica de um bebê, meus amigos ganham outras utilidades.

Então, acabei por me tornar uma espécie de “book hunter”. Passo horas e horas em sebos à caça de alguma obra rara. Descobri várias e às vezes sofro muito ao ver um autógrafo se desbotando diante da umidade, uma capa de uma rara primeira edição permanentemente danificada. Pena que o desmazelo de alguém comprometera algum tesouro. Por um desses acasos da existência, cheguei a conhecer a Guita, esposa de José Mindlin. Nem sei se posso afirmar aqui, sem correr o risco de ser leviano, que ela era uma restauradora de livros. O que ela fazia era muito mais: era mágica! Bastava um volume avariado lhe cair nas mãos para sofrer uma transformação.

A partir daí, eu, que nunca havia colado uma ingênua fitinha em qualquer lombada ou capa, tive a confirmação de que estava inteiramente certo. Restaurar qualquer objeto é uma tarefa que exige não só habilidade, paciência, carinho e conhecimento, mas também um dom. É preciso saber que o restaurador é alguém que consegue ressuscitar algo que estava perdido. É por isso que idolatro todo aquele que defende, que ama, que recupera, que quer o bem para um livro.

Eu quis, neste pequeno relato, dar uma amostra do meu amor pela palavra. Tento até hoje tranquilizar meus pais, atestando que a leitura não me fez miserável, mas sei que não acreditam, principalmente quando me encaram com uma condescendência eivada de dó. Se não nos trazem iluminação, se não nos trazem redenção, se não nos trazem esperança, pelo menos que as letras nos tragam prazer e libertação.