Peter Pan lê Peter Pan

Um livro da Kiera Cass vende 400 mil exemplares no Brasil. Pedro Bandeira teve um milhão de livros negociados em determinado ano. Marcelo, Marmelo, Martelo, da Ruth Rocha conquistou muito mais de um milhão de leitores. Bom, estamos falando de uma luta que começa lá no final dos anos 1960. Estamos falando de literatura infanto-juvenil e de formação de leitores, certo? Nem vamos chegar a Harry Potter e companhia para não complicarmos o assunto. Beleza. Prestaram atenção no termo “formação de leitores”? Então, vamos tratar agora de autores de livros para adultos. O autor que mais vende hoje no Brasil talvez seja o Milton Hatoum: foram comercializados 200 mil exemplares dos livros de maior sucesso dele (e estou falando de 5 ou 6 obras). A premiada obra de Cristovão Tezza,  O filho eterno, vendeu 70 mil exemplares. Vamos fazer umas contas. Perderam-se, no meio do caminho, 930 mil leitores, entre Rocha e Tezza. Ou 330 mil leitores, entre Cass e Tezza. Porque, convenhamos, literatura infanto-juvenil é também, ou deveria ser, literatura de formação. É meio óbvio que os leitores de Pedro Bandeira avançassem, em algum momento, para Machado de Assis. Gastam-se bilhões esperando que isso aconteça. Editores entopem os bolsos de grana. O que acontecem com esses leitores? São eternos Peter Pans? A literatura infanto-juvenil só consegue criar leitores infanto-juvenis para o resto da vida?

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Cavala, de Sérgio Tavares

Infelizmente não tenho tempo para ler todos os livros do mundo. Ninguém tem. Felizmente, as obras que devem ser lidas não chegam a 2% do montante. Tento ser, como diz o senso comum, um “leitor voraz” e se um romance ou um volume de contos não me agrada logo nas dez primeiras páginas, eu o abandono sem remorso. Ontem saquei da estante uma obra que vale a pena ser lida. Abandonei por algumas horas o W. G. Sebald, sugerido por Ronaldo Cagiano, e me embrenhei pelas páginas de “cavala”, que venceu o prêmio Sesc de 2009. A narrativa que dá nome ao livro é uma pequena obra-prima. Fala de uma ex-modelo que sofre de uma variante agressiva de TOC. O modo como Sérgio Tavares relata as manias, as crises de depressão, a fixação pela ordem onde é impossível haver ordem, é algo fantástico. A narrativa persegue o caos (no bom sentido) que a personagem sente dentro de si. No segundo conto aparece novamente o mendigo do primeiro – só que, se neste a ex-modelo só consegue sentir repulsa, naquele a protagonista, uma ninfomaníaca, extrai prazer da decadência e da degradação. Acho esse expediente, de utilizar a mesma personagem em diversos contos, muito interessante. O destaque é para a forma de narrar, lírica e ao mesmo tempo fragmentária, urgente.

Importante mencionar também que os contos são narrados em primeira pessoa. Outro dia li um resenhista escrever um absurdo. Atestou ele que o romance que criticava era bom, porque estava escrito em terceira pessoa, o que significava que o autor fugia dessa onda de falar de si próprio. Puxa, duas aberrações: o sujeito disse que o livro já era bom porque a história vinha narrada em terceira pessoa. Depois, o pior: na opinião dele, narrar em primeira pessoa significa falar de si mesmo. A julgar pelo argumento do resenhista, Sérgio deve ser uma ex-modelo anoréxica. 

Em breve escreverei uns comentários sobre o novo livro de poesia de Osvaldo Rodrigues.

Roteiro da queda – Whisner Fraga

O sono está no encalço da madrugada
E meu relógio analógico/digital vacila em um paradoxo genético
Os ponteiros acenam cinco horas
O quartzo traceja meia-noite e quinze
A temperatura, em graus Celsius, defende um calor
Que não posso sentir
A lua, conforme aquele escravo eletrônico/mecânico
Escora em quarto minguante
Enquanto a bússola relincha um norte militante, autômato
O cronômetro, a tábua de marés, o calendário
Os demais imprevistos do maquinismo
Compunham um estorvo à minha lógica
E não me restituíam o tempo.

Era um choro, um chiar dissonante de microrganismos
Acossando os entrepostos, os fortes, as trincheiras,
Triturando com seu algoritmo de bestas
A vulnerabilidade plasmática de minha filha.
Era um choro meu também
Um mecanismo de três meses
Cedia à experiência de um enigma de bilhões de anos.

Que era um choro que era um grito que era uma exigência
Que era uma promessa de algo incerto e seu holocausto recém-nascido
Que era a minha dor injetada em sua careta de pânico
Que era um mundo pilhando um mundo
E jumentos de lítio cacarejam uma hora irônica e falsa
Monstros de química martelam a próxima verdade:
Que a natureza é acaso
E ninguém pode pressupor o minuto que ainda não aconteceu.

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